Destaque Saúde

Entre a legalidade e a não regulamentação: como pacientes têm acesso à cannabis medicinal

Sofrendo de insônia e perturbações do sono, o advogado Felisberto Jacomo considerou utilizar medicamentos derivados da cannabis ao ouvir depoimentos que considerou impressionantes. A mãe de um conhecido, com dores na coluna que a impediam de se movimentar, passou a consumir fármacos derivados da planta da maconha e teve melhora expressiva. O filho de outro amigo estava sendo tratado para hiperatividade com cannabidiol (CBD). Após um longo inquérito com conhecidos, Jacomo decidiu procurar um médico que pudesse receitar os medicamentos.

“Hoje, tomo três ou quatro gotas de CBD por dia antes de ir para a cama”, conta Felisberto Jacomo. “Isso me trouxe muita melhoria no sono. Não tenho nenhum efeito colateral. Para mim foi muito bom.” Ele afirma que o medicamento – um óleo quase sem gosto ou cheiro – é seguro em quantidades maiores: “Posso tomar até dez gotas, mas com cinco já sinto letargia no dia seguinte.”

Para adquirir o medicamento, Felisberto Jacomo entrou em contato com a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), sediada em João Pessoa. Em 2017, a Abrace se tornou a primeira entidade do país com autorização judicial para cultivar maconha com fim medicinal. Hoje, diversas outras associações brasileiras conseguiram atuar com os fármacos, seja via autorização judicial ou salvo-conduto por meio de habeas corpus. Em Goiás, a Associação Goiana de Apoio e Pesquisa à Cannabis Medicinal (Agape) conquistou essa concessão; em São Paulo, a associação Culive; em Santa Catarina, a Associação de Cannabis Medicinal de Santa Catarina (Santa Cannabis); entre outras. 

Com o atestado médico que indica a necessidade de ser tratado com medicamentos produzidos com base na cannabis, o paciente pode entrar em contato com as associações para se tornar um cooperado. O preço médio de 20 ml de CBD produzido no Brasil é de R$ 300, e o medicamento é fabricado segundo regulamentação e fiscalização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 

O caso de Felisberto Jacomo ilustra o de mais de 100 mil brasileiros que são tratados com os medicamentos diariamente. Além de aliviar distúrbios do sono, os fármacos derivados da planta da maconha tratam também condições como epilepsia, esclerose múltipla, artrite, distúrbios psiquiátricos e dores crônicas. Atualmente, cientistas estudam as propriedades medicinais dos cerca de 120 compostos canabinóides, que se encontram nas plantas da família Canabiáceas, como o tetra-hidrocanabinol (THC), mas o CBD é o único composto cuja comercialização é autorizada pela Anvisa.

O presidente da Associação Goiana de Apoio e Pesquisa à Cannabis Medicinal (Agape), Yuri Ben-Hur da Rocha Tejota, afirma: “Entre nossos associados, a maior parte se encontra em um dos dois extremos: ou na terceira idade, ou são crianças. Por serem públicos sensíveis, é importante lembrar que ninguém discute a administração de cannabis de forma indiscriminada para crianças – temos médicos que fazem acompanhamento dos casos e também farmacêuticos que acompanham a titulação do produto. Não é tóxico, não há vício e nem adicção ao bem estar que a cannabis traz.” 

Proibido mas liberado?

O advogado constitucionalista Wesley César explica que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outras instâncias têm progressivamente concedido autorizações para pacientes se tratarem com compostos extraídos da cannabis, mas isso não significa que o acesso aos medicamentos é irrestrito. Quem compra não compra os produtos das associações autorizadas, corre o risco de ser enquadrada no Artigo 34 da Lei 11.343/2006, pelo qual é crime “fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas”. A pena é de 3 a 10 anos de reclusão, e pagamento de dias-multa.

Para que a regulamentação da cannabis medicinal avance, ainda são necessários estudos científicos que comprovem a eficácia dos medicamentos. Guilherme Torezani, coordenador de doenças cerebrovasculares do Hospital Icaraí e coordenador da Neurologia do Hospital e Clínica de São Gonçalo, afirma que em sua área de especialidade, muito tem sido comentado sobre o tratamento com derivados da Cannabis. “Ainda que o tratamento pareça promissor, mais estudos são necessários para entender melhor o papel desses medicamentos no tratamento”. 

“Na Cannabis, encontramos mais de 100 substâncias químicas diferentes, e ainda estamos começando a entender a função delas. O canabidiol, por exemplo, ainda que não tenha nível de evidência para indicação, parece ser mais benéfico para sintomas não motores do que sintomas motores da doença. Creio que ainda vamos precisar esperar grandes ensaios clínicos, que sejam feitos de forma muito criteriosa, para prescrevermos derivados da Cannabis com segurança e embasados em dados científicos”, finaliza.

Cannabis pelo Sus

A Indústria Química do Estado de Goiás (Iquego) firmou uma parceria com uma empresa norte-americana especializada na produção de CBD. O acordo com a Golden CBD+ envolve a transferência de tecnologia com o objetivo de que a empresa estatal goiana possa fabricar produtos da cannabis medicinal para distribuição pelo Sistema Único de Saúde (Sus) no estado. Esta, que é a primeira Parceria Público Privada (PPP) para medicamentos à base de cannabis, foi publicada no Diário Oficial do Estado de Goiás no dia 14 de março. 

Segundo Diony Melo, médico especialista em cannabis medicinal, o intuito da PPP entre Iquego e Golden CBD+ é fazer com que a população do estado de Goiás possa ter o sofrimento aliviado por meio do tratamento à base de canabidiol na saúde pública. “Inicialmente, serão disponibilizados de imediato para comercialização os seguintes produtos: Full Spectrum Canabidiol 100mg/ml (3000mg/30ml) – Solução Oral e Full Spectrum Canabidiol 200mg/ml (6000mg/30ml) – Solução Oral. A previsão é de que a produção seja iniciada em junho, pois depende de questões sanitárias e de importação”, destaca o médico.

Para que a parceria tenha efeito, é necessária regulamentação por lei que autorize a distribuição dos medicamentos a base da planta. Já tramita um projeto de lei na Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), de autoria do deputado estadual Lincoln Tejota (UB), para a distribuição gratuita de medicamentos que contenham na composição, fitocanabinóides, CBD, Cannabigerol (CBG), THC e outros nas unidades de saúde pública estaduais e privadas conveniadas ao Sus. Goiânia já possui uma legislação própria aprovada.

Lincoln Tejota afirma: “Hoje, a Cannabis já é regulamentada para fins terapêuticos em vários países, como Israel, Canadá, Estados Unidos e, mais recentemente, na Austrália. No Brasil, no entanto, o que existe é a permissão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importação do Canabidiol — substância encontrada na Cannabis — nos casos de prescrição médica para o tratamento de epilepsias refratárias às terapias convencionais”. Segundo o parlamentar, o acesso ao medicamento ainda é muito baixo, devido a seu alto valor no mercado, e também muito limitado, pois apenas o CBD é disponibilizado pelas regulamentações da Anvisa, ignorando uma série de condições e doenças que necessitam dos outros canabinóides.

Fonte: JOrnal Opção

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *