Em entrevista a Oeste, Cuno Tarfusser, ex-juiz do Tribunal Penal Internacional, diz que não prender o presidente da Rússia legitimaria conduta criminal
O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, declarou recentemente que, se o presidente russo, Vladimir Putin, vier ao Brasil para o G20 deste ano, “nós estaremos muito contentes”.
As declarações de Vieira causaram polêmicas, pois Putin é alvo de um mandato de prisão expedito pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). O político russo responde por crimes de guerra cometidos na Ucrânia.
Desde 2000, o Brasil é signatário do Estatuto de Roma, que instituiu o TPI. A comunidade internacional ratificou o documento em 2002.
Segundo o ex-juiz italiano do TPI Cuno Tarfusser, é “impensável” e “incompreensível” que o Brasil não respeite uma determinação da Corte.
Para ele, trata-se de mero “oportunismo político”, com consequências jurídicas e políticas internacionais, mas principalmente um impacto negativo sobre a população, que perde a confiança sobre o respeito das regras.
Lula, Putin e o TPI: entrevista com Cuno Tarfusser
Tarfusser salienta que o Brasil deveria ser líder internacional na defesa de direitos humanos, e não se prostrar para “ditadores pequenos, médios ou grandes”. Ele falou sobre o tema em entrevista a Oeste. Confira os principais trechos abaixo
Como o senhor avalia as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do chanceler Vieira, sobre o descumprimento da ordem do TPI e a não prisão de Putin?
Não ouso pensar que esse cenário possa ocorrer de verdade. Não posso acreditar que o Brasil se coloque em uma situação como essa, no mínimo muito discutível, de ter que decidir se prende ou não Putin. E, portanto, se vai respeitar ou não uma obrigação jurídica que o país assumiu diante do restante do mundo. Seria uma forma de oportunismo político extremamente discutível. Algo bastante incompreensível e triste. E estou usando adjetivos diplomaticamente aceitáveis.
Mauro Vieira chegou a dizer que “seria muito feliz se Putin viesse ao Brasil” durante o G20. O que dizer sobre isso?
Uma frase incompreensível. A política deveria olhar um pouco além do seu próprio quintal. Ter um pouco de visão. Uma frase como essa só pode ser uma provocação. Mesmo assim, é tenebrosa. Dá arrepios pensar que vem de um país como o Brasil, não da Coreia do Norte. Vem de um representante de um país democrático, cujo Estado se baseia no respeito à lei. É algo sacramentado na própria Constituição brasileira. É folia pura. Em desprezo a todas as regras da comunidade internacional.
Qual a opinião da comunidade internacional em relação a uma posição como essa por parte do Brasil?
Incredulidade. Como pode um país tão grande e importante como o Brasil, um Estado de Direito, uma democracia consolidada, o país da amiga Sylvia Steiner, ex-juíza do Tribunal Penal Internacional que levou adiante o processo contra Thomas Lubanga, possa até mesmo pensar de colocar em dúvida a autoridade da Corte? É claro, se há divergências, se há críticas, elas são bem-vindas. A própria Corte pode sempre melhorar. Mas um Estado de Direito como o Brasil se aproximando de países que levam adiante políticas de agressão, violações maciças e sistemáticas de direitos humanos, além de crimes contra a humanidade, como a Rússia, é inacreditável.
“Se o Brasil saísse do TPI por razões politicamente pouco defensáveis ou compreensíveis, o impacto na comunidade internacional não seria tão forte. O país ficaria isolado.”Cuno Tarfusser
Na sua experiência, quando um país começa a enviar sinais como esses, é o prelúdio para a saída do TPI, como ocorreu com Filipinas e Burundi?
É difícil dizer. Prever um cenário como esse é muito complicado. Cada caso é diferente, cada país tem sua história. Mas, se o Brasil saísse do TPI por razões politicamente pouco defensáveis ou compreensíveis, o impacto na comunidade internacional não seria tão forte. O país ficaria isolado. A conjuntura internacional é essa. Parece-me que o Brasil não está entendendo qual o rumo da geopolítica neste momento histórico. A maioria dos países do mundo condena a invasão da Ucrânia, reconhece crimes contra a humanidade e de guerra por lá. Basta ver o resultado das votações na Assembleia-Geral da ONU. Mesma coisa no caso de Israel.
Qual a mensagem que o Brasil passaria ao mundo ao não prender Putin?
Significaria não apenas violar precisas normas de Direito internacional, que o próprio Brasil aceitou quando assinou e ratificou o Estatuto de Roma, em 2002. Seria uma legitimação da conduta criminal de Putin. Mas, além da mensagem internacional, existe uma mensagem para o povo brasileiro: de que o crime compensa. Dizer para a sociedade que, mesmo com responsabilidades gravíssimas das atrocidades cometidas por Putin, não acontece nada. Ninguém é responsabilizado. É uma péssima mensagem.
Quais seriam as consequências para o Brasil em caso de não prisão de Putin?
Há dois tipos de consequências. A jurídica, prevista no próprio Estatuto de Roma, no artigo 87, que indica como, em caso de não cooperação, o país possa ser sancionado pela Corte e a questão transmitida para a Assembleia dos Países Membros do TPI. A partir desse momento começaria uma segunda consequência, dessa vez política. Os países membros do TPI poderiam decidir como atuar em relação a um país que não respeitou seus compromissos jurídicos. Mas essas consequências não são reguladas pelo estatuto.
Alguns políticos e juízes brasileiros acusam o TPI de não ter jurisdição na Rússia nem na Ucrânia. Por isso, a prisão de Putin seria ilegítima.
Isso é falso. O tribunal tem sim jurisdição. Não existem áreas cinzentas. Nesse caso específico, o TPI tem poder de atuar, pois mais de 40 países pediram a ele que agisse. Além disso, mesmo que nem a Ucrânia nem a Rússia sejam membros do Estatuto de Roma, o TPI tem competência territorial, pois a Ucrânia aceitou a sua jurisdição em dois documentos votados pelo Parlamento ucraniano. Essa questão sequer deveria ser discutida.
Por que muitos países do chamado “Sul Global” estão criticando ou até saindo do TPI?
Não acredito que seja algo referível ao sul ou ao norte do mundo. O problema é com a comunidade internacional como um todo, que não é mais a mesma de 1998. Depois do final da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim, o mundo era inspirado por uma série de ideais: multilateralismo, direitos humanos, cooperação internacional. Hoje isso tudo está no avesso: o bilateralismo, o fechamento dos países, o nacionalismo exacerbado; são esses os valores que estão prevalecendo.
“O exemplo que está sendo dado pela liderança brasileira não é positivo”Cuno Tarfusser
O senhor considera as palavras de Lula e de seu ministro como uma “traição” aos valores do que o Brasil deveria defender?
Quem tem responsabilidades políticas é o primeiro que deveria respeitar e fazer respeitar as regras. Um líder deve dar o exemplo, respeitando as regras. Nesse caso, o exemplo que está sendo dado pela liderança brasileira não é positivo. Na política não deveriam prevalecer as emoções em detrimento das regras basilares. Existe uma responsabilidade em relação aos seus cidadãos, antes mesmo do que em relação ao mundo. É preciso aumentar a percepção da população de que respeitar as regras é o certo a fazer.
O Brasil deveria ser um líder, regional e internacional, propugnando valores positivos para o mundo. Deveria estar na linha de frente na defesa dos direitos humanos. Não deveria se aliar, ou pior, se submeter à vontade de ditadores pequenos, médios ou grande. As palavras de Lula sobre Putin são bastante perturbadoras.
Fonte: Revista Oeste