Análise que utilizou teste da OMS identificou que homens entre 45 e 54 anos são mais vulneráveis ao vício
Uma análise inédita feita a partir dos resultados de um inquérito nacional e de um teste da OMS (Organização Mundial da Saúde) mostra que 6 milhões de brasileiros, ou 4% da população adulta, têm um padrão que indica consumo perigoso de bebidas alcoólicas, com risco de dependência.
As maiores prevalências desse risco foram encontradas entre os homens (6,6% contra 1,7% entre as mulheres), pessoas entre 45 e 54 anos (6,9%), com 9 a 11 anos de estudo (5%), residentes das regiões Centro-Oeste e Norte (6,8%) e pretos e pardos (4,7%).
Os dados foram extraídos do Covitel (Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia), que ouviu 9.000 brasileiros de janeiro a abril de 2023 sobre vários fatores de risco para doenças crônicas, entre os quais o consumo de álcool.
O Covitel foi desenvolvido pela Vital Strategies, organização global de saúde pública, e pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas), com financiamento da Umane, associação civil sem fins lucrativos que apoia projetos em saúde pública.
Na análise foram avaliados três aspectos: episódio de consumo abusivo, frequência semanal de consumo e risco ou de indício de dependência. Para esse último item, os pesquisadores aplicaram um instrumento de avaliação da OMS chamado Audit (teste de identificação de distúrbios no consumo do álcool).
Esse teste usa uma escala de dez itens, com perguntas como se a pessoa já se envolveu em briga ou em acidente de trânsito ou se não conseguiu realizar alguma atividade devido ao consumo de álcool. A confirmação da dependência, porém, só pode ser feita por profissional da saúde.
Pouco mais de um quinto da população adulta (22%) relata consumo abusivo de álcool (a partir de quatro doses em uma mesma ocasião para mulheres e a partir de cinco doses para homens) nos 30 dias anteriores à entrevista para a pesquisa.
As maiores prevalências desse consumo abusivo foram encontradas nos homens (28,9%), nas pessoas de 18 a 24 anos (32,6%), na população de maior escolaridade (26,5%) —com mais de 12 anos de estudo— e nos moradores da região Sudeste (23,7%).
Roberto (nome fictício) conhece essa realidade. “Estava fazendo a pós-graduação no alcoolismo”, afirma durante uma reunião do AA (Alcoólicos Anônimos) na zona leste de São Paulo. “O álcool tira a essência do ser humano, o senso de respeito, a serenidade.”
A força para procurar ajuda veio com o nascimento do filho, hoje com 1 ano e 8 meses. “Quero ser pai, e é como aquele aviso sobre as máscaras no avião: ‘Coloque primeiro em você’. Se eu não estiver bem, não consigo cuidar de ninguém”.
Para Luciana Sardinha, gerente sênior da área de doenças crônicas não transmissíveis da Vital Strategies no Brasil, um dos achados mais preocupantes da análise é o fato de os jovens entre 18 e 24 anos terem consumo abusivo e risco de dependência muito acima das pessoas com 65 anos ou mais —4,8% contra 0,7%.
“Daqui a 10, 15 anos, esse jovem estará no auge do seu momento de trabalho, da sua vida produtiva, e já está com esse consumo de risco”, diz ela. Não é possível comparar esse comportamento com pesquisas anteriores porque é a primeira vez que o Audit é aplicado de forma completa e para uma amostra representativa de toda a população.
Segundo Fernando Wehrmeister, professor associado da UFPel, outras pesquisas têm mostrado que os jovens tendem a beber menos durante a semana, mas quando bebem, nos finais de semana, exageram.
Um terço (33,2%) entre 18 e 24 anos relatou não se lembrar do que aconteceu após uma bebedeira pelo menos uma vez no último ano. Na população em geral, o índice foi de 21,7% (13,8 milhões). Desses, 2,6% se sentem assim todos os dias e 9,2%, pelo menos uma vez por mês.
“Há uma série de coisas embutidas nesse ‘não lembrar do que fez por conta da bebida’. Tem a questão da violência, das doenças sexualmente transmissíveis, do beber e dirigir, coisas muito sérias”, alerta Sardinha.
Os “apagamentos” são mencionados com frequência na reunião do AA e eram a grande preocupação de Lívia (nome fictício). “Comecei a beber na faculdade. Depois, terminava o expediente e ia tomar uma cerveja. Não sabia que a doença é progressiva”, compartilha.
“Nos últimos anos, eu não bebia todo dia. Mas, quando bebia, não parava. Queria que comprassem mais e mais cerveja. Eu me lembrava do começo das confraternizações, depois não me lembrava de nada. Ficava com aquela questão moral: será que aprontei alguma coisa? Falei algo que ofendeu alguém? Hoje estou livre dessa angústia.”
Os resultados também apontam que 5,6% (3,5 milhões) dos brasileiros que consomem álcool já feriram alguém ou se feriram após ter bebido. A maior prevalência está na faixa etária entre 25 e 34 anos —6,9% já tiveram esse comportamento pelo menos uma vez na vida.
Cerca de 9,7 milhões de consumidores de álcool (15,3%) relatam que alguém já manifestou preocupação com essa conduta e 3,4% percebem diariamente ou quase todos os dias que não conseguem parar de beber.
O analista financeiro Carlos Eduardo, 38, está há cinco anos sem beber após quase duas décadas de muito abuso do álcool. “Comecei na época da faculdade. Depois, com mais dinheiro no bolso, era bebedeira quase todos os dias.”
Ele conta ter perdido duas namoradas devido às brigas geradas pelo consumo abusivo de álcool. Essa situação também quase causou o rompimento com a sua parceira atual. “Provoquei muito sofrimento. Mas a ficha caiu a tempo”, diz ele, que frequentou por quase um ano reuniões do AA.
Pouco mais de um quinto dos consumidores de álcool (21,7%, ou 13,8 milhões) sentiu culpa por ter bebido nos 12 meses antes da pesquisa.
Outros 8,9 milhões (14,1%) tiveram a percepção de que não conseguiriam realizar atividades devido ao álcool nos 12 meses antes da pesquisa. Quase 6 milhões (9,3%) disseram ter precisado beber ao acordar para “curar” a ressaca.
“São pessoas que não estão trabalhando ou que têm uma produtividade muito menor. Mais pra frente terão muitas doenças e precisarão recorrer ao INSS para afastamento. Fora o custo que isso tem para o sistema de saúde”, diz Sardinha.
Dados do Ministério da Saúde apresentados na audiência pública no Senado na última quarta (23) mostram que entre 2010 e 2018 os custos diretos e indiretos atribuídos ao álcool foram na ordem de R$ 1,5 trilhão. Só os gastos hospitalares foram de R$ 738 bilhões, e os ambulatoriais, de R$ 416 bilhões.
Para Sardinha, é muito importante que o país adote as estratégias preconizadas pela OMS para reduzir os danos à saúde provocados pelo álcool, entre as quais as restrições na venda e na publicidade.
“Não pode vender bebidas para menores, está na lei, mas em cada esquina tem alguém vendendo. Onde tem mais fiscalização, as pessoas consomem menos”, diz a pesquisadora.
Nas discussões da reforma tributária, cujo texto está sob análise do Senado, há uma proposta de maior tributação de bebidas alcoólicas, com a inclusão de um imposto seletivo sobre esses produtos.
Pesquisa Datafolha divulgada nesta semana mostrou que metade da população brasileira entende que beber, mesmo que de vez em quando, faz mal à saúde. Para 38% desses, as bebidas estão associadas a acidentes de trânsito; para 36%, à dependência; e para 36%, à violência doméstica. Para 71% dos entrevistados, bebidas alcoólicas devem ter impostos mais altos.
Fonte: Mais Goiás