Nova disputa da ‘democracia relativa’ ocorre em meio a 300 presos políticos e a inelegibilidade, por 15 anos, da candidata da oposição
Durante uma visita do ditador Nicolás Maduro ao Brasil, em maio do ano passado, o presidente Lula afirmou que a Venezuela é “vítima de uma narrativa de antidemocracia e autoritarismo”. Após algumas semanas, em uma entrevista à rádio Gaúcha, o petista repetiu a declaração e, ao ser interpelado sobre a perpetuação do regime chavista desde 1999, acrescentou que “o conceito de democracia” naquele país “é relativo”.
Neste domingo, 28, os venezuelanos vão às urnas “escolher” o próximo presidente em um modelo descrito por Lula como normal e pacífico. A narrativa, porém, não resiste aos fatos. Tudo indica que o vitorioso já está definido, e é o próprio Maduro. Isso porque o regime controla todas as instituições, um processo que começa com a mudança da Constituição, proposta por Hugo Chávez, há 25 anos.
Um dos “puxadinhos” de Maduro é o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), equivalente ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do Brasil. Através do CNE, por exemplo, Maduro conseguiu que seu rosto aparecesse 13 vezes na cédula de votação, e na urna eletrônica, enquanto os outros nove “candidatos” podem apenas uma.
Instrumentalizando o CNE, Maduro tornou ainda inelegível, por 15 anos, sua principal opositora, a ex-deputada María Corina Machado, decisão essa posteriormente ratificada pelo Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela, sob o domínio da ditadura. Antes dessa decisão, María Corina obtivera 90% dos votos nas primárias de seu partido.
O CNE impediu também a inscrição da professora universitária Corina Yoris, escolhida como alternativa da oposição, ao bloquear o sistema da autoridade eleitoral no momento em que a docente foi se cadastrar. Sendo assim, a direita precisou registrar às pressas o ex-diplomata Edmundo González, sem muito carisma e praticamente desconhecido pela população, mas que ganhou projeção nacional graças ao expressivo apoio popular de María Corina, que consegue mobilizar multidões por onde passa.
É em González que os venezuelanos ávidos pela redemocratização vão depositar os seus votos hoje. Esse simples ato, porém, é extremamente arriscado.
Ameaças, prisões e estelionato eleitoral na Venezuela de Nicolás Maduro
Diferentemente do Brasil, na Venezuela, as pessoas não podem sair às ruas com camisetas nas quais manifestam sua escolha na disputa, pois em redutos dominados pelo chavismo, como Llanos e Cidade Tiuna, milícias armadas a serviço da ditadura ameaçam os eleitores a votar em Maduro.
Quando a intimidação não ocorre com uma arma de fogo na cabeça, ela vem discretamente, com o possível fim de benefícios sociais que criaram um rebanho de dependentes do governo.
Até pessoas simples que ousaram oferecer hospedagem a María Corina e a seus aliados, enquanto a opositora fazia campanha pelo país, tiveram seus estabelecimentos fechados pelo regime chavista. Tampouco pequenos negócios à beira da estrada foram poupados da fúria socialista — a ditadura proibiu María Corina e pessoas ligadas a ela de viajar de avião pelo país.
Os ataques do regime de Maduro não se restringem aos eleitores. Ao longo da disputa, o regime sequestrou membros do núcleo duro de María Corina. O “desaparecimento” mais recente ocorreu em junho deste ano, com o “sumiço” de Frankin Chacón, aliado da ex-deputada em Táchira, no oeste do país.
Chacón é apenas um entre vários no entorno de María Corina que acabaram nas garras de um regime que já encarcerou aproximadamente 300 presos políticos. Antes desses casos, o governo atuava de forma “mais branda” ao inabilitar prefeitos. Meses antes dos sequestros, a ditadura tornou inelegíveis dez chefes do Executivo municipal depois de eles manifestarem apoio à candidatura de González.
Todas essas violações só chegam ao mundo graças ao trabalho de divulgação da própria oposição. A ditadura não permite sequer a entrada de observadores independentes. Em maio, o regime cancelou um convite feito à União Europeia (UE) após a UE ter supostamente aplicado sanções contra chavistas, algo que não ficou provado até hoje.
A presença da UE fazia parte do Acordo de Barbados, assinado entre a ditadura e a oposição em outubro de 2023, com a mediação dos Estados Unidos. Conforme o tratado, a disputa eleitoral deste ano deveria ser realizado no segundo semestre de 2024. Além disso, contaria com missões de observação da UE, do Centro Carter e da Organização das Nações Unidas.
O regime conseguiu arrumar briga até com o TSE. Na semana passada, a presidente da Corte, Cármen Lúcia, recuou da decisão de enviar dois técnicos ao país. O entendimento da ministra se deu em virtude da acusação de Maduro segundo a qual as urnas eletrônicas brasileiras não são auditáveis.
O descaso da ditadura se estendeu a ex-chefes de Estado. Há poucos dias, Maduro desconvidou o ex-presidente da Argentina Alberto Fernández, peronista e amigo de Lula, e não permitiu o desembarque na Venezuela de um avião com os ex-presidentes Miguel Ángel Rodríguez (Costa Rica), Jorge Quiroga (Bolívia), Vicente Fox (México). Todos são membros do Grupo Iniciativa Democrática da Espanha e das Américas, um fórum defensor da democracia na América Latina. Celso Amorim, assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência, é um dos poucos diplomatas de relevância que estão na Venezuela.
Por isso, a ausência de observadores independentes dificulta a contestação de um resultado viciado há quase duas décadas. No sábado 27, eleitoras publicaram vídeos na internet sugerindo a violação de urnas com votos para Maduro.
Futuro político da Venezuela
Há alguns cenários para a Venezuela a partir de hoje. Ambos, contudo, não parecem alvissareiros.
Um deles dá conta da “vitória” de Maduro, que consolidaria a ditadura e reiniciaria a perseguição aos opositores, a começar por María Corina, González e todos os que ajudaram em sua campanha.
O segundo é a derrota de Maduro e o reconhecimento do resultado pelo CNE. No entanto, cinco meses separam a vitória eleitoral da posse. Nesse ínterim, Maduro pode inventar algo, como a invasão de Essequibo, para suspender o pleito.
A terceira possibilidade envolve a posse de González, que levaria à negociação com o regime, que inclui uma possível anistia a seus membros. Nicolás Guerra, filho de Maduro, chegou a cogitar essa hipótese, em uma entrevista, e disse que María Corina não aguentaria uma oposição chavista.
Há ainda a crise migratória que já fez 5,5 milhões de refugiados desde o início da escalada autoritária, milhares de famintos, censura contra a mídia (no seu ardente amor pela imprensa livre, o regime acaba de bloquear três portais de notícia independentes), entre outras atrocidades. O novo governo da oposição teria também de lidar com a economia em frangalhos, visto que a inflação chega a 450% em 12 meses.
Os próximos dias serão de agonia para a população venezuelana, sob a ameaça de um “banho de sangue” e “guerra civil” prometidos pelo ditador da democracia relativa descrita por Lula.
Fonte: Revista Oeste